A violência não resolve nem mesmo quando o problema original é a violência em si. A agressão não é a saída em nenhuma situação, mas, principalmente, a violência não é a solução para questões médicas.

Muitos mitos cercam determinadas doenças, e a ficção pode ter papel fundamental para falar sobre o assunto, desmistificá-lo ou, dependendo da abordagem, pode contribuir para o preconceito e para a propagação de pensamentos sociais cientificamente errados ou sem comprovação.

Foi o que aconteceu em cena da novela “O Sétimo Guardião”, trama das 21h da TV Globo. No capítulo que foi ao ar no dia 24 de novembro, a personagem Stefânia (Carol Duarte), que possui gagueira, foi agredida e, a partir daí, “curada”.

Se a violência não resolve, é possível que uma situação como essa aconteça na vida real? Não, e ela ainda valida que o imaginário popular siga criando situações perigosas para pessoas gagas, que muitas vezes já são alvo de agressões psicológicas como o bullying.

> Saiba como foi a cena que foi ao ar na novela “O Sétimo Guardião”;

> Violência não resolve: gagueira não pode ser “curada” com agressão;

> Veja mitos sobre a gagueira e preconceitos sofridos por essas pessoas;

> Veja a nota de repúdio emitida pelos principais conselhos de classe a respeito da cena de violência.

 

Cena de novela

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No trecho que leva pouco mais de três minutos, Stefânia, uma prostituta gaga, é vítima de violência por parte de Sampaio, personagem vivido por Marcelo Novais. Ele a estrangula para forçá-la a falar sobre o interesse dela em uma marca que ele teria no corpo.

Depois da agressão, ela sai do quarto tossindo e, ao conversar com Adamastor (Theodoro Cochrane), ele percebe que a jovem não está mais gaga. Stefânia então vai conversar com Ondina (Ana Beatriz Nogueira) sobre o caso, e a cafetina diz: “Ficou tão apavorada, que ficou boa da gagueira. Reza para essa gagueira não voltar”.

 

Violência não resolve: agressão não é cura para gagueira

Há muitos mitos e estigmas envolvendo as pessoas que possuem gagueira, ou seja, cerca de 5% da população. Além disso, elas podem se tornar alvos de bullying, chacota e discriminação por sua condição de falante. A violência não resolve um quadro clínico e a exposição desse tipo agressão em rede nacional preocupa profissionais da área sobre possíveis repercussões.

Para a fonoaudióloga e especialista em linguagem e desenvolvimento infantil, Raquel Luzardo, a cena de “O Sétimo Guardião” foi irresponsável e tratou a gagueira de forma cruel e leviana.

“Atribuir a cura da gagueira a um ato de violência expõe a pessoa que gagueja a situações de agressão como tentativa de cura, além de reforçar fundamentos não científicos. Sabemos que a obra é de ficção, mas isso não justifica a forma equivocada e desrespeitosa que foi apresentada. Foi um desserviço”.

 

Mitos sobre a gagueira

 

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Preconceito e mitos em relação à gagueira podem causar constrangimento e desconforto a quem se torna alvo de chacota

Raquel elencou ainda os principais mitos e formas de agressão velada às pessoas que gaguejam:

  1. Um grande susto pode curar a gagueira – MITO. Um susto não é capaz de alterar a predisposição genética para gagueira ou tampouco tem o poder de modificar a estrutura e funcionamento cerebral de pessoas que gaguejam;
  2. Pedir calma, para respirar ou pensar antes de falar melhora a gagueira – MITO. Isso causa uma preocupação com a sua fala, o que pode contribuir com a piora da gagueira. É importante esperar que termine sua fala sem completar as palavras, respeitando o tempo e forma de falar, principalmente no caso de crianças;
  3. Crianças gagas têm dificuldade de raciocínio e podem ter problemas de aprendizagem – MITO. Gagueira e QI não têm nenhuma relação. Algumas pessoas optam por expressar menos suas opiniões em função da gagueira;
  4. Crianças gaguejam para chamar a atenção dos pais – MITO. O comportamento não é voluntário, não há controle sobre a gagueira.

 

Nota de repúdio

Após o episódio em que é mostrada a violência contra a personagem que gagueja, seguido por sua “cura”, o Conselho Federal de Fonoaudiologia divulgou uma nota de repúdio demonstrando que violência não resolve e é incapaz de curar uma condição ligada a fatores genéticos.

“O Conselho Federal de Fonoaudiologia repudia qualquer forma de violência. Flagramos no dia 24 de novembro uma cena da novela “O Sétimo Guardião” em que uma personagem Stefânia, que apresenta gagueira, após sofrer violência por meio de estrangulamento é “curada”. Apesar de sabermos que a obra é ficcional, a cena veiculada é bastante equivocada e desrespeita, de maneira irresponsável, os sujeitos que apresentam gagueira.

A gagueira é considerada pela ciência como distúrbio ou transtorno de fluência da fala, que acomete pessoas, independentemente, de raça, nível sociocultural e grau de escolaridade. Acomete em torno de 5% da população brasileira, ou seja, cerca de 10 milhões de brasileiros.

Usualmente, pessoas que gaguejam apresentam dificuldade em suas relações sociais, comprometendo seu desempenho escolar e/ou profissional. A gagueira TEM tratamento e se feito de forma competente apresenta resultados extremamente promissores, minimizando danos emocionais e sociais. Nesse sentido, afirmamos: não se cura gagueira com susto ou violência, e muito menos com agressão!

Abordar o assunto desse modo, além de desrespeitoso, é banalizar diversos sofrimentos, é perpetuar uma crença equivocada e nociva à sociedade. Além disso, incitar a violência para com aqueles que apresentam algum tipo de distúrbio, deficiência, ou “diferença” é uma forma perversa de preconceito! Na verdade, é uma irresponsabilidade!

Reproduzimos parte da nota oficial da Associação Brasileira de Gagueira sobre o assunto: “A sociedade brasileira carece de um correto esclarecimento a respeito da gagueira, suas causas, impactos na vida da pessoa que gagueja e, principalmente, a necessidade de uma correta avaliação, diagnóstico e tratamento fonoaudiológico especializado em Fluência. Quando a personagem que gagueja “se cura” da sua gagueira a partir de uma violência, incentivamos na sociedade a ideia de que o susto e práticas violentas como a surra ou o “bater na cabeça com colher de pau” são práticas aceitáveis”.

Desta forma, o Conselho Federal de Fonoaudiologia repudia qualquer desrespeito e incitamento à violência para com o diferente. Gagueira não tem graça, tem tratamento”.

 

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