Você já sentiu que alguma coisa estava errada em seu relacionamento, mas não conseguiu identificar exatamente o que? Já teve a sensação de que as brigas de vocês eram diferentes – bem mais graves e frequentes – do que as de outros casais? Já sentiu culpa por não conseguir mudar e ser aquilo que seu parceiro desejava? Se responder “sim” para alguma dessas questões, fique de olho. Você pode ter passado por um relacionamento abusivo (ou ainda estar nele!).
Na última semana o reality show Big Brother Brasil atraiu mais atenção do que qualquer pessoa poderia imaginar. O reality, que está em sua 17ª edição, foi palco de um caso que, nem de longe, pode ser considerado entretenimento. Uma jovem de 20 anos e um homem de 38 levaram a expressão “relacionamento abusivo” para as rodas de discussão e páginas policiais. O caso deles, como veremos mais para frente, teve um “final feliz”, se é que isso é possível em um cenário como esse. Mas essa não é, infelizmente, a realidade de muitos casais que estão passando pela mesma situação diariamente – e bem longe das câmeras.
Nessa matéria você vai ver:
⇒ O que é relacionamento abusivo
⇒ Operfil do abusador
⇒ O dia em que a realidade da violência invadiu um reality show
⇒ O que diz a lei
⇒ Quais as sequelas que a vítima carrega
⇒Como ajudar?
O QUE É UM RELACIONAMENTO ABUSIVO
De acordo com a psicóloga Semiramis Maria Amorim Vedovatto, coordenadora da Comissão de Psicologia e Saúde do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), relacionamentos abusivos podem acontecer em diferentes contextos que envolvam relações interpessoais – mãe e pai com filhos, chefia e subordinado, relacionamentos amorosos. “Eles envolvem essencialmente um jogo de poder e de controle de uma pessoa sobre a outra. Os principais sinais são o ciúme, a violência (física, psicológica e sexual), distanciamento emocional e esfriamento ou abuso sexual”, explica.
Na prática, é possível identificar um relacionamento abusivo quando uma das partes passa a “dominar” a relação, usando todos os artifícios que conseguir para envolver a outra pessoa e, aos poucos, acabar com a autoestima e deixá-la cada vez mais submissa.
“Podemos observar também possessividade, desqualificação, manipulação, mudanças de humor, uso de punições, desrespeito, humilhação, deboche. O relacionamento tende a ser desigual e controlador”, diz Semiramis.
A incidência maior é de domínio dos homens contra as mulheres, o que pode ser explicado em partes pelo machismo que habita nossa sociedade. Mas, como ressalta a psicóloga, é preciso lembrar que esse mesmo machismo inibe o homem de assumir que possa sofrer domínio de uma mulher.
“Ele era muito ciumento e fazia cenas horríveis, gritava comigo, batia forte com a mão em lugares próximos a mim, ficava dizendo que eu podia facilmente troca-lo por outro porque eu era “linda demais”, que muitos homens mais ricos que ele podiam “me ganhar” e que por conta disso ele “demonstrava mesmo” o amor que ele tinha por mim e que seu não quisesse mais era só virar as costas pra ele, “o coitado que fazia qualquer coisa por mim”(…) Me senti culpada diversas vezes. Sempre que eu o indagava por algo que ele fez, ele fazia com que a situação mudasse de lugar pra eu me sentir culpada. Minha mãe e alguns amigos próximos me alertaram diversas vezes, mas eu estava “cega” demais pra poder notar que ele era abusivo. Hoje tenho inseguranças, medo de entrar num relacionamento sério e sofrer tudo de novo”
L.C.*, publicitária, de 36 anos. Foi vítima de um relacionamento abusivo aos 23. Como muitas outras, só entendeu tudo pelo que havia passado muito tempo depois. Após o término do relacionamento.
É preciso esclarecer que nem só violência física é característica de abuso. Ela faz parte de um ciclo de comportamentos, que podem ser igualmente destrutíveis.
Quando é preciso ficar alerta:
- O parceiro zomba ou te constrange na frente dos amigos e da família
- Ele menospreza suas conquistas e breca seus sonhos
- Faz com que você se sinta incapaz de decidir sobre qualquer coisa
- Ele te intimida, te culpa e ameaça para conseguir o que quer
- Diz o que você deve ou não vestir
- Fala como deve pentear o cabelo
- Diz que você não é nada sem ele ou que vai morrer sem você
- Te trata de maneira agressiva, com beliscões, apertões, empurrões ou mesmo violência física mais grave
- Te culpa pela maneira com que ele age, como e a culpa do comportamento agressivo fosse sua
- Faz pressão para fazer sexo
- Dá a sensação de que “não há como sair” do relacionamento
- Evita que você faça outras coisas que gosta e que não o envolvam
- Te castiga para que você “aprenda a lição” quando faz algo que ele desaprova
O PERFIL DO ABUSADOR
De acordo com o psicólogo Dr Roberto Debski, na maioria dos casos o abusador é uma pessoa que já foi vítima de algum abuso. “É uma pessoa doente, que precisa de ajuda, por mais que ela não reconheça. Pode ser inclusive alguém que tenha um traço de psicopatia ou sociopatia. O abusador adquire aquela relação através da sedução, mas depois começa a achar um jeito de controlar, dominar e assim conquistar o objetivo final, que é deixar a outra pessoa à mercê dele”.
Ainda de acordo com o psicólogo, o agressor normalmente não busca tratamento, pois não admite que tem algum problema. Ele atribui toda a culpa para a vítima e justifica que suas ações são consequência de um comportamento inadequado do (a) parceiro (a).
Youtuber Jout Jout fala sobre como reconhecer um relacionamento abusivo
Renato Villela Gallo, psicólogo e pós graduando em neuropsicologia na Universidade Federal De São Paulo, complementa: “No começo ainda parece imperceptível, quando é só uma troca de roupa – que segundo ele (a) não é adequada para a ocasião ou quando o batom vermelho é vulgar”. Depois disso, o relacionamento parte para um ponto muito mais sombrio, com agressões verbais severas. O grande problema é que desse ponto em diante a vítima já se encontra tão envolvida, que demora para perceber que algo está errado.
O DIA EM QUE A REALIDADE DA VIOLÊNCIA INVADIU UM REALITY SHOW
A aparente “normalidade” no início da relação é parte do que torna difícil a identificação do abuso. O caso ocorrido no Big Brother Brasil é um bom exemplo disso. Marcos Harter, cirurgião plástico, de 38 anos, se envolveu com Emilly Araujo, de 20 anos, logo no início do confinamento. Juntos, se tornaram os protagonistas do programa e favoritos absolutos ao prêmio de R$ 1,5 milhão. Com um temperamento difícil, Emilly se mostrou ciumenta, intransigente com algumas questões e, como muitos participantes do programa mesmo disseram, um pouco mimada. Marcos estava sempre por perto, conversando e tentando “ensinar” a garota. Isso fez com que tanto o público quanto os demais confinados demorassem a perceber os indícios de que Marcos, na verdade, não era a “parte mais madura e centrada” do casal.
Os indícios estavam lá! Um pedido para que ela trocasse de roupa, uma frase machista sobre mulheres que bebem demais, a postura superior em relação à companheira… e o desfecho da história seguiu o ciclo completo do abuso. Durante dias, Marcos se descontrolou, mudou de humor, gritou, encurralou, apertou o braço da namorada e a intimidou. Ele também chorou, disse que não queria perde-la, foi carinhoso, declarou que não queria mais brigar. O cirurgião alternou entre momentos de raiva e carinho, entre gritos e abraços. E com isso foi minando o psicológico de Emilly.
Youtuber Maira Medeiros analisa o comportamento de Marcos
Acostumada a interagir de forma intensa com o os internautas, Bianca Muller, blogueira criadora do portal de humor “Morri de Sunga Branca”, percebeu uma dificuldade de entendimento do público sobre o que estava de fato acontecendo na “Casa Mais Vigiada do Brasil”. “No começo foi um pouco complicado, pois são situações muito naturalizadas (agressão, abuso, machismo). Até me surpreendi quando gradualmente as diminuíram a resistência sobre o assunto e começaram inclusive a desabafar”.
Ela lembra que já ocorreram outros casos de comportamento machista ou brigas no programa. O problema nessa situação específica foi o fato de tratarem de maneira romântica um comportamento tão nocivo, além da diminuição da gravidade do caso com base da comparação com brigas em edições passadas.
“Nunca podemos achar que relacionamento abusivo ou comportamento agressivo num relacionamento é um barraco. Violência contra a mulher não é entretenimento. Jamais podemos colocar no mesmo balaio uma moça batendo panelas e um cara acuando a namorada na cozinha. Mas não é a primeira vez. Thyrso, lá do BBB2 infernizou a vida da menina até ela ficar com ele. Era super incisivo e nunca aceitou não como resposta. Não houve nenhum tipo de violência, mas a mulher não ter o NÃO respeitado é algo que tem que mudar”, diz Bianca.
“Romantizar relacionamentos abusivos, ciúmes, brigas é sempre nocivo, pois naturaliza situações de abuso. O próprio termo ‘entre tapas e beijos’ precisa com urgência ser abolido”
Bianca Muller
Quem também se posicionou sobre o assunto foi a revisora, escritora e tradutora Alessandra Siedschlag, que acompanha o programa há anos e é uma das fundadoras do portal de humor “Te Dou Um Dado?”. Ao começar a falar sobre o tema nas redes sociais ela notou que muitas pessoas se identificaram com Emilly e passaram a compartilhar as suas próprias histórias. “Muitas seguidoras minhas me mandaram mensagens, por DM ou na timeline, contando vários casos. A TV provoca ecos, negativos ou positivos, e neste caso, apesar de as histórias serem horríveis, vejo como algo positivo”, relata.
Caso foi destaque inclusive no Jornal Nacional
Se a exposição do fato em rede nacional serve como um alerta, a falta de resolução do caso poderia ter causado sérios danos. No BBB a polícia interferiu, realizou exame de corpo e delito e constatou indícios de agressão. Marcos foi eliminado do programa e segue sendo investigado. Caso seja comprovada de fato a agressão, ele pode ser condenado de 1 a 3 anos de prisão.
“Uma grande amiga minha me escreveu uma longa mensagem contando que se viu naquela situação em que Marcos sobe na Emily deitada na grama, e fica falando o nome dela. Ela disse que passou por algo absolutamente igual, e que o agressor inclusive repetia o nome dela como o Marcos ficava repetindo o da Emily. E penso que se não acontecesse nada com Marcos, essa pessoa – e tantas outras – se sentiria passando pelo inferno novamente, sem um fechamento adequado” conta Alessandra.
Foi exatamente por conta dessa identificação que outras vítimas sentem ao saber de novos casos de abuso que incluímos no início desse texto o “Trigger Warning” (abreviado para a sigla TW). Ele normalmente é traduzido como “aviso de gatilho” e serve para notificar que a publicação pode desencadear memórias e emoções indesejadas, os “gatilhos mentais”. Incluir o TW nos posts e textos é uma questão de respeito e preocupação com a saúde do próximo.
“Comecei a me sentir mal em ver na televisão situações que eu mesma havia vivido. Foi duro ver tudo acontecer com outra pessoa e lembrar que, antes disso, quem estava passando por aquela pressão psicológica era eu”.
A.C*, de 31 anos foi uma das pessoas que se sentiram impactadas com a exposição do caso na televisão. Ela conta ainda que chorou ao ver a reação de Emilly quando Marcos foi eliminado.
Mais um sinal claro do abuso, Emilly chorou e se culpou pelo que tinha acontecido. Ela chegou a repetir que sabia que ele nunca a agrediria, nunca faria nada com ela. A conversa que as colegas de confinamento tiveram com ela foi considerada por muitas pessoas na internet um exemplo de feminismo, sororidade e delicadeza para tratar um assunto tão difícil.
O QUE DIZ A LEI
Conhecida como a maior arma das mulheres no combate e prevenção da violência doméstica, a Lei 11.340, assinada pelo presidente Lula em 2006 e batizada em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, é reconhecida por cerca de 98% da população brasileira como uma eficaz arma de combate à violência – de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
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Mas e quando a violência não é física, ela ainda é válida? Sim! A Lei Maria da Penha lista como formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;
V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.
Vale lembrar, porém que em caso de qualquer tipo de violência que não seja física, a denúncia só pode ser feita diretamente pela vítima. Quando as brigas chegam à agressão, qualquer pessoa que tenha testemunhado pode denunciar.
AS SEQUELAS DA VÍTIMA
“Podem aparecer questões ligadas a baixo autoestima, quadros depressivos, quadros de ansiedade, manifestações psicossomáticas, baixa capacidade de atenção e concentração, estresse pós-traumático, uso abusivo de álcool ou outras drogas, dores, quadros fóbicos, dificuldade na capacidade de crítica e de percepção da vítima, que tende a se culpabilizar”, explica a dra. Semiramis.
A vítima precisará de ajuda profissional de terapeutas, psicólogos e, muitas vezes, psiquiatras para que consiga restabelecer a confiança, autoestima e capacidade de relacionamento com outras pessoas.
Até pela dificuldade de compreender o que é a violência psicológica, a culpabilização da vítima também é bastante comum. Marilene Kehdi, psicóloga, palestrante e escritora, reforça que esse comportamento é tóxico. “Não culpem a vítima, pois muitas vezes ela não tem nem consciência que está vivendo um relacionamento abusivo. Essas pessoas precisam ser acolhidas, alertadas e serem cuidadas por profissionais, com apoio total da família e amigos”
É necessário que a pessoa crie consciência do que aconteceu, aprenda a reconhecer seus padrões de comportamento e o comportamento abusivo e aceite que aquilo não é saudável. Sem esses cuidados, ela poderá transferir sua dependência para outra pessoa, entrando em um novo relacionamento tóxico.
COMO AJUDAR
Ao perceber que alguém está em um relacionamento abusivo que ainda não chegou às vias de fato, a Dra Marilene diz que o melhor a fazer é conversar com a própria vítima, porém com muito cuidado e tato.
“É preciso alertar de maneira clara mas sempre com cuidado e carinho, pois muitas vezes as pessoas não percebem que estão sofrendo. Muitos não conseguem enxergar, de tão dominadas que estão pelo abusador. Essas pessoas precisam de ajuda profissional para romper e sair dessa situação”.
E não se esqueça: Violência doméstica mata. “Meta a colher” sim, denuncie!
*Os nomes foram ocultados para preservar a privacidade dos entrevistados.
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