Em 2018, a jovem Mariana Ferreira Borges, conhecida nas redes sociais como Mari Ferrer, procurou a delegacia para registrar um boletim de ocorrência relatando ter sido drogada e estuprada no Café de La Musique, um beach club de luxo em Florianópolis (SC).
Quase dois anos depois, em meio a investigações rodeadas de polêmicas, apelos nas redes sociais e busca por justiça, a jovem teve seu nome estampado na imprensa de todo o país no dia 3 deste mês, quando um trecho de uma audiência realizada via videoconferência veio a público por meio de uma matéria do The Intercept Brasil e gerou revolta. A indignação se deu após o portal utilizar o termo “estupro culposo” para explicar o motivo pelo qual o acusado André de Camargo Aranha foi absolvido.
A justificativa para a escolha de palavras se dá com base nas alegações finais do Ministério Público, que afirmam que “não seria razoável presumir que o réu soubesse, ou que deveria saber, que a vítima não desejava a relação” e que não há nos autos do processo qualquer comprovação de que o acusado tinha conhecimento ou deu origem à suposta incapacidade da vítima para resistir a sua investida. Com base nisso, foi aplicado o conceito jurídico de “erro de tipo”.
“O erro de tipo é quando a pessoa tem uma falsa percepção da realidade, que a impede de perceber que está cometendo um crime”, detalha o advogado Emanuel Pessoa, que explica ainda que não existe no direito penal brasileiro o estupro culposo: “O estupro exige sempre que haja uma violência ou uma grave ameaça. E tanto a violência quanto a ameaça, são intencionais. A decisão não adotou a tese de estupro culposo, o problema é que em um caso dessa natureza, não deveria ter sido citada a doutrina que fala sobre isso. Ela é uma doutrina que fala que o estupro culposo não existe e, por não existir, não se poderia condenar ninguém com base nele. Só que utilizar isso em um caso como esse, passa a ideia errônea de que a decisão estaria se baseando em uma doutrina desse tipo”.
Apesar de a totalidade do processo seguir em segredo de justiça, diversas manifestações foram feitas nos últimos dias com a intenção de mostrar como uma sentença como essa pode prejudicar anos de luta pelo direito das mulheres.
“Evidentemente, quando você tem uma sentença como essa e que faz o referenciamento à doutrina do estupro culposo, você desestimula as mulheres a fazerem as denúncias dos crimes sexuais, principalmente o de estupro, porque elas ficam receosas de se submeterem a todas as dificuldades e vexames da exposição, de ter que relembrar a situação e enfrentar o agente perpetrador do mal e vê-lo ainda ser absolvido. Isso dificulta muito o estímulo para que as mulheres venham a denunciar”, comenta Pessoa.
O vídeo da audiência
Outro ponto que causou comoção nacional foi o trecho do vídeo em que Mariana pede respeito na audiência. Isso acontece durante a fala do advogado de defesa do réu, que utiliza fotos antigas de Mariana, em que ela aparece de biquíni ou em poses consideradas mais sensuais, para tentar desqualifica-la como vítima.
O delegado de Polícia e professor de Direito Criminal, Sandro Caldeira, discorre sobre o tratamento dispensado á vítima e diz considera-lo absurdo. “Foi retrogrado, demonstrando um machismo estrutural arraigado em nossa sociedade, e que precisa ser enfrentado e discutido por todos nós. Existem muitas Marianas Ferrer que não chegam aos noticiários. Essa desqualificação da mulher e tratamento desumano precisa ser interrompido”.
Ele explica também que a defesa deve apresentar todos os meios de prova admitidos em direito, mas não agir de forma desumana e desrespeitosa, violando seus deveres éticos.
“O juiz deveria de intervindo de forma mais enfática para coibir as manifestações claramente abusivas e descabidas realizadas pelo advogado de defesa do réu. Como aquele que conduz a audiência, ele deveria ter agido para impedir ações abusivas praticadas por qualquer das partes”, argumenta Caldeira.
Emanuel Pessoa complementa dizendo que é natural que os advogados de defesa busquem desqualificar os acusadores, mas que isso deve ser feito de uma maneira que não fira os direitos fundamentais, dentre esses o de ser tratado com dignidade.
“Foi ferido fortemente o direito à dignidade da pessoa humana, da Mariana. Independente dela estar ou não falando a verdade. Esses são direitos de todos, inclusive dos acusados. Nem o promotor nem o juiz deveriam ter permitido que aquilo prosseguisse. Mesmo que o acusador tenha mentido, que eu não estou dizendo que seja o caso aqui, é importante que se perceba que, se isso tiver ocorrido, o acusador deverá enfrentar as penas da lei e não a humilhação”, finaliza Pessoa.
Mas afinal, quem é Mariana Ferrer? Confira a cronologia do caso
Mari Ferrer, que tinha 21 anos em 2018, trabalhava como blogueira de moda e ocupava o cargo de embaixadora do Café de La Musique, divulgando o espaço em suas redes sociais. Em 15 de dezembro daquele ano, a jovem participou de um evento no local. No dia seguinte, registrou um boletim de ocorrência relatando ter sido drogada e estuprada.
Cerca de 5 meses depois, ela deu início às exposições do caso no Intagram e no Twitter, utilizando ambas as redes para a divulgação de provas e para pedir por justiça.A história viralizou e foi compartilhada por milhares de pessoas.
Em julho de 2019, o empresário André de Camargo Aranha se tornou réu do caso, investigado como estupro de vulnerável. A princípio, André afirmou não ter tido qualquer tipo de contato com a influenciadora no dia do crime e se recusou a colaborar com a justiça, negando o pedido de exame de DNA. Em uma reviravolta, a delegada responsável pelo caso na época, Caroline Monavique Pedreira, pediu que um copo de água usado pelo empresário durante seu depoimento fosse estudado. Os resultados comprovaram a compatibilidade entre o material genético de André e o esperma presente na calcinha de Mariana.
Aranha mudou seu depoimento e alegou ter sim mantido contato com a jovem, mas que não se lembrava em detalhes o que aconteceu. Em setembro de 2020, o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, julgou como improcedentes as denúncias da jovem e absolveu o réu da acusação de estupro de vulnerável.
“Preliminarmente, é importante ressaltar que não tivemos acesso ao processo para falar de forma mais robusta. Entretanto, ao fazer a leitura da sentença, a mesma apresenta-se, em um primeiro olhar, como tecnicamente correta, tendo havido uma absolvição por insuficiência de provas, nos moldes do que estabelece o Código de Processo Penal. É importante ressaltar que a absolvição se deu por esse motivo, considerando que a perícia apresentou laudo negativo para presença de qualquer substância no organismo da vítima que pudesse atestar a vulnerabilidade da mesma, além de outros elementos”, finaliza Caldeira.
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