Mais uma vez o Big Brother Brasil foi cenário de situações que se tornaram debate na sociedade. Se na última edição a polêmica girava em torno dos relacionamentos abusivos, dessa vez o racismo e o preconceito racial estão em foco. Conversas acaloradas, discussões que mais parecem uma aula sobre o dia a dia do negro na sociedade brasileira e críticas de que algumas pessoas estão exagerando na militância têm feito parte do dia a dia dos participantes do reality show e de todos aqueles que acompanham o programa pela televisão ou pelas redes sociais.
Para quem não está concorrendo ao prêmio de 1,5 milhão de reais, o mais importante de todo esse cenário é entender que temos ali representado na tela um recorte da nossa sociedade. Pessoas de todas as raças e classes sociais, convivendo em coletivo, com um objetivo em comum. E quando menos de um mês de convivência já é o bastante para que tantas falas consideradas racistas aconteçam e tantas discussões sobre o tema sejam necessárias, é hora de pararmos para refletir: afinal, qual é a realidade do racismo no Brasil?
- Preconceito Racial e Racismo – a realidade no Brasil
- O Racismo em rede nacional
- Racismo reverso existe?
- A dor de quem já sofreu com a discriminação
Preconceito Racial e Racismo – a realidade no Brasil
Segundo o IBGE, do total de 16 milhões de brasileiros na extrema pobreza, a grande maioria é negra ou parda. “Às vezes parece que avançamos, mas sempre surge uma nova polêmica que aponta o contrário”, comenta Liliane Rocha, Fundadora e CEO da Gestão Kairós consultoria de Sustentabilidade e Diversidade.
Atualmente, de acordo com o IBGE, entre a população negra 9,9% é analfabeta, ao passo que entre a população branca, este número é de 4,2%. “Ou seja, o abismo social entre brancos e negros ainda é grande. E as desigualdades não param por aí, mesmo com 54% da população composta por negros e negras, quando analisados os poucos que conseguem ingressar numa universidade e se formar, ao chegar ao mercado de trabalho se deparam com outras dificuldades impostas pela raça”, explica Liliane.
A questão fica ainda mais clara quando são colocados, lado a lado, os resultados da pesquisa de rendimento médio salarial, trabalho infantil e taxa de desemprego. Também de acordo com o IBGE, em 2017 o rendimento médio de todos os trabalhos obtido pelos brancos foi de R$ 2.814, contra R$ 1.606 do pardos e R$ 1.570 dos negros. No Brasil, a média salarial do negro chega a ser quase 50% menor do que a dos brancos. Discrepante também, é a taxa de crianças de 5 a 7 anos que trabalham. Em 2016 o IBGE computou 1.835 crianças nesta faixa etária que, contra todas as normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, exerciam atividade remunerada. Destas, 63,8% eram negras ou pardas.
Mais do que uma dívida histórica, relembrar o período de escravidão no Brasil é uma necessidade atual. 130 após a abolição da escravatura, temos ainda um cenário de desigualdade extrema nos mais diversos âmbitos da sociedade.
O Racismo em rede nacional
Mas onde está a ligação entre a realidade desigual do Brasil e o reality show mais assistido da última década? Em 2019 os telespectadores puderam ver no Big Brother Brasil um dos maiores grupos de negros e pardos de todas as edições do programa. Mais do isso, consciente ou não, a direção do programa confinou pessoas ativas nos movimentos de combate ao preconceito com outras que não só não estão por dentro desses movimentos, como também colecionam declarações polêmicas, racistas e preconceituosas.
Paula, uma das principais protagonistas dessas declarações, em uma conversa recente falou sobre um caso de violência doméstica, em que uma mulher foi agredida pelo marido e ao descrever o agressor, disparou: “E aí eu pensei que ia chegar mó faveladão lá, e quando eu vi o cara era branquinho, morou não sei quanto tempo na Austrália ou no Canadá, não sei”.
Foi ela também que, em outro momento, se referiu ao seu próprio cabelo como “cabelo ruim”. Vale lembrar que Paula é loura e alisa os cabelos com progressiva. Na ocasião, foi corrigida por Gabriela, uma das pessoas que tem passado seus dias na casa ensinando sobre as questões raciais: “não fala isso. Cabelo não é ruim. Ruim é o preconceito”.
Gabriela foi também a autora de uma das conversas mais elucidativas sobre esse assunto. Em um bate papo com outras duas participantes, ela ouviu reclamações de que elas já teriam sofrido “racismo reverso” por serem muito brancas. Coube à Gabriela explicar porque a discriminação sofrida por elas não pode ser chamada de racismo.
Racismo reverso existe?
Para que possamos entender porque Gabriela afirmou que racismo reverso não existe, precisamos primeiro compreender que há uma diferença entre racismo e preconceito racial. A assistente social Tais Pereira de Freitas explica que “o preconceito racial é uma ação que tem um viés mais individual. Percebe-se mais o preconceito no comportamento, nas ações das pessoas do que nas ideias, nos espaços coletivos”. Ela explica ainda que é por isso que muitas pessoas têm a impressão de que a desigualdade tem diminuído. Com todo mundo vulnerável, nesse mundo de câmeras, redes sociais e transmissões ao vivo de tudo o que acontece ao nosso redor, ninguém quer ser preconceituoso e daí as pessoas se policiam mais.
“Isso dá a impressão de que o preconceito racial diminuiu. Mas preconceito racial e racismo andam juntos. Enquanto o primeiro diz respeito basicamente a ações, o segundo se configura como um conjunto de ideias, crenças, valores que colocam determinado grupo como inferior. A partir dessa inferioridade, vão sendo diminuídas as oportunidades de acesso, inserção, permanência qualitativa. A população negra, portanto, encontra-se inserida de forma precária na sociedade como um todo. O que vai retroalimentar o conjunto de ideias e valores que os colocam de fora. Em linhas gerais isso é racismo. Um sistema perverso de exclusão. Racismo reverso não existe porque nenhum branco no Brasil está excluído dessa sociedade por sua cor da pele. Não existe um sistema de ideias, crenças e valores que coloque a pessoa branca como inferior”, explica Tais.
Foi esse o discurso também adotado pela participante do Reality Show. Deixando claro que era empática ao problema da colega, ela explicou que é preciso usar as terminologias corretas. Que a discriminação sofrida pela pessoa por ser branca ainda é uma discriminação e deve ser combatida como tal, mas que não podemos chamá-la de racismo.
O mesmo tipo de ofensa, a comunicadora Cacá Filippini, de 40 anos, sofreu na pele. Trabalhando como modelo, ela foi eliminada de uma seletiva de campanha publicitária por ser branca demais. “Isso desencadeou em mim uma necessidade de buscar soluções para que eu conseguisse bronzear. Fiz bronzeamento artificial e até mesmo ingeri suplementos que estimulariam o bronzeado. Me senti muito mal com a situação”, conta.
Quando Cacá levou o caso para conhecidos, dizendo que havia sofrido preconceito, todos disseram que isso não existia e que ela só poderia reclamar caso fosse negra. Mas na verdade, ao se sentir diminuída, Cacá estava em seu direito de reclamar. Ninguém pode ser diminuído por seu gênero, cor, orientação sexual, peso… Só não podemos cair no erro de chamar uma situação como essa de racismo.
“O racismo no Brasil é estrutural, ele permeia nossa vida diária e todas as organizações, fazendo essa hierarquização, em que os negros estão sempre numa situação de desigualdade. E isso é comprovado pela nossa história, que é totalmente baseada em 388 anos de um sistema social, político e econômico, com mão de obra gratuita e escrava. Se em algum momento da história do Brasil ocorreu ou vier a ocorrer a hierarquização que minorize os brancos em relação aos negros, neste contexto sim, poderíamos falar de racismo reverso. Hoje não faz sentido”, explica Liliane.
A dor de quem já sofreu com a discriminação
E quando as pessoas colocam em cheque coisas como “esse filho é seu mesmo?” por ele ter nascido branco? Foi isso que sofreu C., que preferiu não ser identificada. Conversamos com a filha dela, que também preferiu se manter anônima: “As pessoas sempre tiveram dúvida se ela era mãe do meu irmão e minha, perguntaram se ela era babá do meu irmão pois ele nasceu loiro, e comigo sempre param para perguntar se sou filha dela pois sou branca e ela não. Até no meio da família, teve um tio que perguntou porque meus pais iam pintar o quarto do meu irmão se ele ia nascer ‘neguinho’, então não precisava disso”.
Não foi a primeira, nem será a última vez que C. passa por situações como essas. “Minha avó e meu avô sempre ensinaram a ela e aos meus tios a encarem o mundo como ele é: cheio de racismo. E ensinaram que tinham que erguer a cabeça e seguirem em frente. O preconceito velado é pior que o preconceito aberto. E ele existe no Brasil e sempre vai existir”.
Liliane Rocha também reforça que o preconceito racial está sim presente na sociedade e acredita que para chegarmos à realidade de igualdade e justiça social com negros ocupando seus lugares de direito, precisamos de líderes mais inclusivos: “temos obrigação como seres humanos de nos comprometer com esse processo de construção de uma sociedade mais justa e com igualdade de direito”
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